Compreende-se como Direito das Sucessões, o conjunto de normas que disciplinam a transferência do patrimônio, seja ele ativo ou passivo, de uma pessoa, em decorrência da sua morte. A transmissão dos deveres e dos bens do de cujus, será realizada aos herdeiros, seja ela por disposição de última vontade, como no caso do testamento, ou, através de imposições legais, como dispõe o Código Civil.
As novas tendências tecnológicas trouxeram mudanças extremamente significativas para a sociedade. As pessoas estão cada vez mais conectadas ao mundo virtual, seja para resolver questões pessoais do dia a dia, ou simplesmente para buscar entretenimento. O fato é que, o uso da tecnologia, gerou um aumento considerável no número de bens e serviços publicados, e consequentemente, armazenados em plataformas e servidores.
As redes sociais por exemplo, proporcionaram e facilitaram grandemente as conexões interpessoais. Com o crescimento dessa interação no mundo virtual, o judiciário vem se deparando cada vez mais, com diversos conflitos relativos à herança digital, ou seja, os bens digitais que foram deixados pelo seu titular, após a sua morte.
O artigo 1.791 do Código Civil dispõe que a herança defere-se como um todo unitário, isso quer dizer que, ela engloba não apenas o patrimônio material do falecido, como também o patrimônio imaterial, onde podem ser inseridos os bens digitais.
Os bens digitais são divididos em: bens com valor econômico e bens com valor sentimental. Entende- se por bens digitais com valor econômico, por exemplo: os criptoativos, NFTs, milhas aéreas, pontos de cartão de crédito, jogos online, perfis profissionais e pessoais nas redes sociais, que atraem publicidade, e-books e canais do youtube que são monetizados, já os bens digitais que possuem valor sentimental englobam: fotos, vídeos, áudios, textos, blogs, mensagens trocadas em aplicativos, e e-mails, entre outros.
Mas como é regulamentada a questão da herança do acervo digital, de uma pessoa que faleceu?
Até o presente momento, não há ainda uma regulamentação no nosso país que verse sobre o assunto, no entanto, já existem jurisprudências nesse sentido. Em parte dos julgados, há o entendimento de que, o acesso a bens digitais do titular já falecido, sendo eles de valores econômicos ou não, configuraria uma violação à sua intimidade e privacidade, quando não houve em vida, qualquer disposição quanto ao destino desses objetos, e por essa razão, tal conteúdo não deveria ser transmitido aos herdeiros.
Contudo, em um caso recente julgado pela 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, a autora ingressou com uma ação de obrigação de fazer em face da Apple Computer Brasil Ltda., pleiteando a autorização da empresa, para que pudesse obter acesso às informação da conta associada ao aparelho celular do seu genitor, que havia falecido, bem como, a todos os dados a ela associados, inclusive aos arquivos armazenados na nuvem, a fim de que pudesse recuperar as fotos do seu pai.
No julgamento do caso, o relator Rômulo Russo entendeu por manter a sentença de primeiro grau, que havia julgado procedente o pedido da autora, condenando a empresa requerida a conceder o acesso pleiteado, para que a mesma pudesse ter acesso aos dados e fotografias armazenados no celular do seu pai, que havia falecido. O relator assim fundamento:
“Os autos tratam do direito de acessibilidade à memória digital; fotografias e mensagens atreladas à vida familiar do titular morto, que podem ser acessadas por sua única herdeira.
A memória digital é equivalente àquela que se encontra fora do aparelho celular. Verte direito substantivo à proteção da memória daquele, cuja titularidade alcança o cônjuge, os ascendentes ou descendentes (art. 20, § único do Código Civil). Conquanto não se trata de pleito que se dirija à proteção dos predicados da pessoa falecida, a memória imaterial é útil apenas à sua única herdeira; do contrário, sem nexo com a vida mantê-la incólume.”
O relator ainda em seu acórdão, pontuou que o direito da autora, decorria da interpretação sistemática do artigo 1.788 do Código Civil que dispõe sobre a transmissão da herança aos herdeiros, em caso de ausência do testamento:
“Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo.”
Em que pese haver ainda, uma lacuna na legislação em relação ao tema abordado, já existem alguns projetos de lei que versam sobre a herança digital. Um deles é o PL nº 6.468/2019, que está em trâmite perante ao Senado Federal. O projeto visa introduzir o parágrafo único ao artigo 1.788 do Código Civil, com a seguinte redação: “Altera o Código Civil para determinar a transmissão aos herdeiros de todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.”
Ainda, está em andamento o PL nº 365/2022, que também tem por objetivo disciplinar a herança digital, compreendida pelo conjunto de fotografias, vídeos, áudios, documentos e todos os demais conteúdos digitais.
Por fim, considerando que ainda não temos uma lei específica para tratar desse tema, existem algumas alternativas para quem pretende resguardar o seu acervo digital, em caso de falecimento. A primeira alternativa é fazer um testamento digital registrado em cartório, nele deverá constar se os bens digitais de sua titularidade serão transmitidos a um herdeiro, ou, caso não seja esse o caso, explicitar no documento, que não possui interesse em transferi-los para ninguém, inclusive podendo solicitar a exclusão do acervo, após o falecimento.
Outra alternativa, é uma opção oferecida pelas próprias plataformas digitais, que consiste em uma opção popularmente chamada de “testamento digital informal”. Neste caso, cada plataforma, de acordo com as suas políticas, permite que os seus usuários possam designar uma pessoa, para que tenha acesso à conta do titular e também aos seus dados, após a sua morte
Resta evidente, portanto, a necessidade de regulamentar o direito sucessório em relação ao direito digital, a fim de que a segurança jurídica possa ser preservada. Ademais, deve ser observado também, o direito de personalidade do titular, pois a sua vontade deverá ser respeitada, em relação a sucessão ou não, dos seus bens digitais.